LIÇÃO 1
O LIVRO DE ÊXODO E O CATIVEIRO DE ISRAEL
NO EGITO
INTRODUÇÃO
I. O LIVRO DE ÊXODO
II. O NASCIMENTO DE MOISÉS
III. O ZELO PRECIPITADO DE MOISÉS E SUA
FUGA
CONCLUSÃO
A peregrinação do povo de Deus
A peregrinação dos patriarcas e a do povo de Israel
antecipam o chamado à peregrinação da Igreja
Por Cesár Moisés
Tentar escrever exegeticamente sobre o livro de Êxodo em tão sucinto
espaço seria irresponsável. Analisá-lo teologicamente, nessa mesma dimensão
espacial é, igualmente, uma tarefa impossível. Para uma leitura aprofundada
sobre o Êxodo, indico, da CPAD, duas excelentes obras: História de Israel, de
Eugene H. Merrill e, Tempos do Antigo Testamento, de R. K. Harrison. Ambas são
fundamentais para se entender o contexto social, político, cultural e religioso
da formação de Israel. Não obstante o fato de os meus objetivos serem modestos,
cansado de ser óbvio, inicio essa reflexão disposto a andar por caminhos não
antes palmilhados e radicalmente viscerais. E não o faço por qualquer outro
motivo senão o de valorizar o relato da peregrinação de Israel durante quatro
décadas pelo deserto, e o que tal trajetória significa, metaforicamente, para
nós que cremos, e que, por isso mesmo, “andamos por fé e não por vista” (2Co
5.7).
Abraão — O peregrino paradigmático
Apesar do grande historiador romeno das religiões, Mircea Eliade, ter provado
que o tempo linear não é uma invenção dos judeus e das religiões chamadas
proféticas (judaísmo, cristianismo, islamismo), pois tal noção já era conhecida
pelo zoroastrismo persa, não se pode ignorar que a decisão de Tera em sair de
sua terra para Canaã, apesar de interrompida por causa de sua morte, pôde ser
continuada através de seu filho Abrão (Gn 11.31,32). Tal decisão em busca de
viver algo diferente do que havia em Ur, é uma forma de romper com o fatalismo
do tempo cíclico, ou do eterno retorno, que matinha todos os povos da
antiguidade numa imobilidade mórbida, apenas esperando o que o “destino”
reservava a cada um, isto é, nada podia ser mudado, tudo seria como sempre foi
em um ciclo milenar.
Se o plano pessoal do patriarca não era residir em Canaã, e sua saída de Ur se
deu apenas para seguir Tera, o fato é que após a morte de seu pai em Harã, Deus
aparece a Abrão e lhe chama, encorajando-o a prosseguir a viagem (Gn 12.1-9 –
Raciocínio diferente encontra-se em Atos 7.2-4). A autorrevelação divina
instaura, para Abrão, a possibilidade de romper a “roda” fatalística. Ao menos
para ele, pela primeira vez, aparece a possibilidade de ter contato com uma
divindade não material como as que seu pai adorava (Js 24.2). Uma divindade que
não se circunscrevia a um local, pois não pertencia a religião alguma. Como
podia ele, em meio a um panteão de deuses, saber, com certeza, que a divindade
que se revelara era o “verdadeiro Deus”? Abraão não sabia, ele creu (Gl 3.6).
Por isso, Paulo afirma que todos os creem são “filhos de Abraão” e que,
portanto, “aqueles que têm fé são os abençoados junto com Abraão, que
acreditou” (Gl 3.7-9).
Essa única promessa que instruiu Abraão, também foi repetida a Isaque, fazendo
este peregrinar (Gn 26.1-25). Posteriormente a promessa foi estendida a Jacó
que, por sua vez, também peregrinou (Gn 28.10—50.26). Inseridos no Egito
através de José, as setenta pessoas da família de Jacó — já tornado Israel —,
transformaram- -se em um populoso contingente, conhecido como “hebreus” (Gn
40.15; 43.32; Ex 1.16; 2.6). Este numeroso povo também permaneceu instruído,
durante longos 430 anos, por essa única promessa dada pelo Senhor aos
patriarcas (Gn 50.24,25; Ex 13.19; Hb 11.22).
O reino de sacerdotes peregrinos
O último estágio da peregrinação a ser aqui sucintamente considerado,
subdivide-se em três períodos de quatro décadas cada um compreendendo os 120
anos da vida de Moisés, o principal protagonista do Êxodo (At 7.23,30; Ex
16.35; Dt 34.7). Na primeira fase, Moisés troca a estabilidade de quatro
décadas no Egito pela incerteza de outras quatro décadas no deserto de Midiã
que constituiu a segunda, e decisiva, fase de sua vida (Hb 11.23-26). Nos
quarenta anos finais de sua trajetória, Moisés foi provado até as últimas
consequências, tendo finalmente a “recompensa” de apenas contemplar a Terra
Prometida (Dt 34.1-4).
A questão a destacar, e que parece não ter sido entendida, é que Deus não
chamou o povo de Israel para exercer um papel hegemônico e imperialista sobre
as demais nações. A promessa dEle a Abraão foi de que através da descendência
do patriarca todas as famílias da Terra seriam benditas (Gn 12.3). Justamente
por isso Deus disse a Moisés que uma vez que toda a Terra era propriedade dEle,
se os israelitas ouvissem a sua divina voz e guardassem a sua aliança, eles
seriam um reino de sacerdotes e uma nação santa (Ex 19.5,6). Como se sabe,
Israel não entendeu esse papel a ser desempenhado e confundiu responsabilidade
com privilégio, representatividade com regalia e bondade divina com mérito
pessoal. O resultado foi o cativeiro e o desterro.
Não obstante a falha do Povo Escolhido, Paulo diz que “tendo a Escritura
previsto que Deus havia de justificar pela fé os gentios, anunciou primeiro o
evangelho a Abraão, dizendo: Todas as nações serão benditas em ti” (Gl 3.8).
Todos os que, pela fé, creem no Evangelho, são filhos de Deus e descendentes do
crente Abraão: “Não há mais diferença entre judeu e grego, entre escravo e
homem livre, entre homem e mulher, pois todos vocês são um só em Jesus Cristo.
E se vocês pertencem a Cristo, então vocês são de fato a descendência de Abraão
e herdeiros conforme a promessa” (Gl 3.28,29). Isso, mais uma vez, é preciso
advertir, não significa privilégios, mas responsabilidades; não visa uma
teologia da substituição, mas um dever sacerdotal. Como afirma o apóstolo
Pedro: “Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo
adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas
para a sua maravilhosa luz; vós que, em outro tempo, não éreis povo, mas,
agora, sois povo de Deus; que não tínheis alcançado misericórdia, mas, agora,
alcançastes misericórdia” (1Pd 2.9,10).
Para não concluir
Mais do que conhecimento histórico e informações geográficas sobre o Êxodo,
acredito que a grande lição desse trimestre é compreender o caráter transitório
dessa nossa realidade. Aprender a contentar-se com o ordinário e não viver à
cata de milagres, alegrar-se com a porção diária sem lamentar por não ter mais
do que realmente precisamos, não ver-se como privilegiado, antes desapegar-se
de tudo aquilo que — todo o mundo sabe — não nos acompanhará além do que a
nossa peregrinação terrena permite. Tal deve ser assim se realmente queremos
que a ética do Reino de Deus prevaleça em, e através de, nós (Mt 5—7). Isso
significa, como afirma Carlos Mesters, transformar numa unidade a “vida vivida”
e a “palavra escrita”. Mas para isso, é necessário entender que “mudando-se a
vida, muda- -se o sentido do escrito para a vida, mudando-se o sentido do
escrito, abre-se um novo sentido para a vida” (Por trás das Palavras,
p.136).
Segundo o mesmo autor, era assim que os primeiros crentes em Jesus
testemunhavam aos judeus. “Dizendo que Cristo estava neste ou naquele texto
vétero-testamentário, os cristãos questionavam a vida dos judeus, pois queriam
levá-los ao reconhecimento de uma nova dimensão neste ou naquele setor da
vida”. O mais lamentável é que os “judeus, da sua parte, negando o princípio
que sempre os guiou na releitura e na reinterpretação do Antigo Testamento, ao
longo de toda a sua história, fechavam-se dentro da letra e queriam impor o
livro à vida. Em nome desse mesmo Antigo Testamento, não queriam aceitar a nova
dimensão cristã da vida e se defendiam contra ela” (Ibid., p.137).
Em “êxodo permanente”, isto é, em trânsito constante, é preciso que entendamos
que “o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no
Espírito Santo” (Rm 14.17). Valores que podem e devem ser vividos,
exemplificados e expostos à sociedade através de nossa existência. Conquanto a
realidade perpétua desses valores, em nossas vidas e em tudo que nos cerca, só
será possível com a completude do Reino através da intervenção de Cristo, uma
pálida demonstração deles é o suficiente para inspirar a sociedade e levá-la a
uma transformação. O contrário desse sacerdócio é religiosidade estéril, e
disso mundo está “cheio”.
César Moisés Carvalho é pastor, professor universitário,
pós-graduado em teologia pela PUC-Rio e Chefe do Setor de Educação Cristã da
CPAD.